domingo, 24 de outubro de 2010

Alberto Caeiro - Fernando Pessoa

A Obra
   Caeiro surge, pois, como lírico espontâneo, instintivo, inculto (não foi além da instrução primária, informa Campos), impessoal e forte como a voz da Terra, de candura, lhaneza, placidez ideais. [...]
    O certo, porém, é que é autor de poemas; e começa aqui o paradoxo da sua poesia. Às palavras procura transmitir Caeiro a inocência, a nudez da sua visão. Daí, algumas vezes, a simplicidade quase infantil do estilo [...].
    Mas o estilo de Caeiro, pobre de vocabulário, predominantemente abstracto, incolor, discursivo, de modo algum se prestava à descrição pictórica impressionista fiel à individualidade das coisas. Em Caeiro, o pensador, o "raciocinador", suplanta o poeta; eis o que se induz do próprio estilo. [...] Em regra, ouvimo-lo argumentar, criticando, não transmitindo sensações mas discorrendo sobre sensações.
Caeiro – Lançamento
   O lançamento de Caeiro foi previsto não só em Portugal, mas também no estrangeiro. Pessoa mobilizou todos os amigos para dele falarem em diferentes jornais e revistas, no continente, nas ilhas e no estrangeiro: Côrtes-Rodrigues, em S. Miguel; em Espanha, através de Guisado. Previu artigos em jornais e revistas inglesas, assim como um «prefácio para a tradução» dos. poemas de Caeiro, e também um artigo em francês no Mercure de France, assim como a tradução dos seus versos e o correspondente prefácio.
    O tom destes prefácios em português ou inglês (não deve ter sequer iniciado o francês) é sempre o de despertar a curiosidade do público para um fenómeno: «o século vinte encontrou finalmente o seu poeta»; «uma obra desligada por completo das tradições literárias de qualquer tipo»; «apareceu de repente»; «A.C. é o poeta do materialismo absoluto».
    Há que distinguir neste conto, em que cada um que conta acrescenta um ponto, duas fases: a do lançamento que, à boa maneira de Pessoa, não ultrapassou os tabiques do romance-drama-em-gente, e a evocação que, depois de morto, os discípulos dele fazem.
Caeiro Sensacionista
   Não espanta que Caeiro apareça à cabeça do Sensacionismo - ele, o curandeiro dessa doença de que, acabaram por reconhecer, o Sensacionismo enfermava também: «o excesso de entusiasmo pela saúde que têm os doentes». É que Caeiro, não o esqueçamos, foi criado no auge do despeito e da fúria de desacreditar o estreito nacionalismo que a Renascença e Pascoaes representavam para Pessoa e Sá-Carneiro.
    Numa entrevista que deu, em Vigo, Caeiro encarniça-se contra eles com toda a violência... . No artigo escrito para A Águia (inédito) para «lançar» Caeiro, ao mesmo tempo que essa «entrevista altamente provocadora», como aí precisa, afirma: «O simbolismo, o saudosismo, tanto um como (o) outro são inimigos da obra de A.C.» . Só, portanto, uma corrente cosmopolita poderia opor-se ao saudosismo da escola do Porto.
Alberto Caeiro
   Alberto Caeiro é outro heterônimo de Fernando Pessoa. Segundo seu criador, nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, nem educação quase alguma, só instrução primária, morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Morreu tuberculoso.
   Pessoa cria uma biografia de Caeiro que se encaixa com perfeição em sua poesia. Ele escreve com a linguagem simples e o vocabulário limitado de um poeta camponês pouco ilustrado. Antimetafísico, pratica o realismo sensorial, numa atitude de rejeição às elucubrações do Simbolismo.
    Afirma que "pensar é estar doente dos olhos", e quer apenas sentir a natureza. Em perfeita consonância com sua busca de simplicidade, escreve versos livres (sem métrica regular) e brancos (sem rimas). Agnóstico, escreve um poema ousado sobre o menino Jesus. Destituído de santidade, Cristo é representado como criança normal: espontânea, levada, brincalhona e alegre. Nisso está a religiosidade de Caeiro.
   Há dois Caeiro, o poeta e o pensador, sendo o primeiro que em teoria se desdobra no segundo. Segundo a imagem que dá dele próprio, vive de impressões, sobretudo visuais, e goza em cada impressão o seu conteúdo original. Não admite a realidade dos números e não quer saber de passado nem de futuro, pois recordar, é atraiçoar a Natureza.
   No Poema dum Guardador de Rebanho se declara pastor por metáfora. O andar constante e sem destino, absorvido pelo espetáculo da inesgotável variedade das coisas. Os seus pensamentos não passam de sensações. Limita-se a existir, com um sorriso de existir e não de nos falar.
   Caeiro surge, pois, como lírico espontâneo, instintivo, inculto (não foi além da instrução primária), impessoal e forte, mas muitas vezes, a simplicidade quase infantil do estilo, pobre de vocabulário, consegue exprimir a infinita diversidade, as incontáveis metamorfóses do mundo.

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